A presença que não apaga incêndios

A presença que não apaga incêndios

Isaías 43:2
Quando você passar pelas águas, eu estarei com você; quando passar pelos rios, eles não o encobrirão; quando passar pelo fogo, você não se queimará; as chamas não o deixarão em brasas.

Deus não promete atalhos, promete companhia.

Contra o consolo barato

Este versículo não é talismã de gente ansiosa por vida sem sustos. É aviso amoroso e duro. Vai haver águas. Vai haver rio alto. Vai haver fogo. O texto não adoça a realidade, ele a nomeia. Prometer o contrário é propaganda religiosa que vende conforto e entrega culpa. Quando as águas sobem e o discurso cai, a pergunta real aparece: quem anda comigo dentro do frio e do calor?

O mundo por dentro da metáfora

Águas, rios, fogo. As imagens tocam feridas de hoje. A planilha que estoura, a notícia que vira a mesa, o silêncio que mata aos poucos. Rios são rotas interrompidas, e o fogo, perdas que consomem. A promessa não diz que o rio some, diz que ele não encobre. Não diz que as chamas não ardem, diz que não transformam você em cinza. É uma palavra de travessia, não de fuga.

Rubem Alves gostava de falar de sonhos, panelas ao fogo, jardins que exigem paciência. O jardineiro não controla o clima, ele aprende a conviver com a chuva e com o sol. A fé adulta faz o mesmo. Deixa de brigar com a existência, aprende a atravessar.

Quando slogans se afogam

Há um evangelho de frases feitas que promete invulnerabilidade. Ele funciona enquanto a vida está no modo selfie. Na primeira correnteza, os slogans se afogam. A fé que se mantém é a que sabe chorar e cozinhar sopa. A que visita quem sofre e lava a louça depois do velório. A que não transforma Deus em obediente do nosso script. Presença não é serviço de entrega. É comunhão que sustenta o corpo enquanto o mundo balança.

Se a sua teologia precisa de mar calmo, não é fé, é turismo. A Escritura opera mergulhos. Coloca a cabeça debaixo d’água para ensinar a respirar com outro pulmão.

O milagre menos fotogênico

Milagres espetaculares existem, mas não são regra de vida. O milagre cotidiano é simples e teimoso. A mente não desaba. O peito respira. Um gesto de bondade chega na hora certa. Uma coragem visita quem jurava não aguentar. A promessa de Isaías transfigura o ordinário. Você atravessa e continua você, sem virar brasa, sem perder o coração.

Ninguém sai do fogo sem marcas. Mas marcas não são derrota, são memória de que a vida é mais forte do que a chama. Como cicatriz que não dói, apenas diz que você esteve ali e que alguém esteve com você.

Práticas de travessia

Nomeie o rio. Não envergonhe a dor. Procure mãos. Deus costuma se esconder nelas. Organize o mínimo. Durma, coma, fale a verdade. Repare o pequeno. Uma xícara quente, uma árvore na janela, um trecho de música. Gratidão não é anestesia, é resistência. E peça linguagem nova para orar. Menos exigências, mais presença. Menos respostas prontas, mais escuta. É assim que a alma aprende a atravessar.

A promessa não nos tira do mundo, mas a presença de Deus dentro de nós .

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