O Pão da Vida e o Vazio que Ainda Rói
Subtítulo:
Uma reflexão filosófica e provocadora sobre João 6:35, fé, fome e o abismo de sentido no mundo contemporâneo.
“Então, Jesus declarou: Eu sou o pão da vida. Aquele que vem a mim nunca terá fome; aquele que crê em mim nunca terá sede.”
João 6:35, NVI
Quando a promessa se torna espelho
Há textos que soam como consolo, e há textos que soam como denúncia. João 6:35 parece o primeiro tipo, uma promessa de saciedade espiritual. Mas, se o lermos sem o perfume das igrejas, talvez ele soe como o segundo, um espelho desconfortável para uma humanidade que nunca se sacia de nada.
“Eu sou o pão da vida.”
No século I, isso era escandaloso porque um homem se colocava no lugar do divino. Hoje, o escândalo é outro, o de perceber que talvez já não tenhamos mais fome do que ele representa. Transformamos o pão da vida em um slogan litúrgico, enquanto nos alimentamos de distrações. Religiosos repetem o versículo como um mantra, mas continuam famintos de sentido, e nós, os supostamente livres, não somos menos vorazes. A fé institucionalizada promete saciar, porém alimenta-se do próprio ritual da falta. Se estivermos sempre vazios, sempre voltaremos à mesa.
O pão que desinstala
E se a mensagem de Jesus fosse menos sobre a promessa de plenitude e mais sobre a coragem de encarar a própria fome? Porque há uma diferença entre estar saciado e parar de fugir do vazio. Talvez crer não signifique encher-se de certezas, mas olhar para a fome sem mentir para si mesmo. A sede que o texto menciona, será mesmo a ausência de fé, ou a inquietação humana que move o desejo de viver?
Kierkegaard diria que o desespero é o ponto de partida da fé autêntica. Nietzsche lembraria que a necessidade de sentido é o último vício da humanidade. Bauman mostraria que consumimos espiritualidade como se fosse entretenimento, leve, instantânea, descartável.
E nós? Nós bebemos de todas as fontes, trabalho, relacionamentos, telas, status, mas continuamos secos. Queremos um pão que não nos confronte, um Jesus que não desinstale, uma fé que não exija fome. Mas o versículo é simples e contundente, aquele que vem a mim nunca terá fome. O verbo vir não é passivo, é movimento, deslocamento, ruptura. Para vir, é preciso sair de algum lugar, deixar para trás o alimento ilusório. Talvez o que Jesus oferece não seja conforto, e sim risco. Talvez não ter fome seja o resultado de ter aceitado morrer para o apetite de tudo o que não alimenta.
O espelho do leitor
E é aqui que o texto se volta para nós, você que lê, eu que escrevo. Será que nós realmente queremos ser saciados? Ou preferimos o ciclo previsível de vazio e preenchimento, a segurança da falta controlada? O pão da vida não é um objeto de fé, é uma afronta à fome bem administrada. Enquanto oramos por plenitude, seguimos viciados em escassez. E talvez seja isso o que mais nos distancia do sentido original da frase, não a falta de crença, mas a falta de coragem de não precisar mais da falta.
A fome que ainda fica
Então, pergunto, se o pão da vida estivesse realmente diante de nós, sem templo, sem dogma, sem aplauso, teríamos coragem de comer? Ou continuaríamos preferindo a fome familiar à saciedade que transforma?
Talvez a verdadeira fome seja essa, a de nunca estar prontos para o banquete que já começou.
Nota do autor
Obrigado por ler até aqui. Talvez o pão da vida nunca tenha sido sobre saciar, mas sobre ter fome do que realmente alimenta.







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