Malaquias 3:10: Entre o Celeiro Antigo e as Barganhas Modernas

Malaquias 3:10: Entre o Celeiro Antigo e as Barganhas Modernas


Se tem um texto bíblico que virou clichê de púlpito é Malaquias 3:10. O famoso “Trazei todos os dízimos à casa do tesouro… fazei prova de mim…”. O problema é que, na boca de muitos líderes, virou senha para uma espécie de loteria espiritual: dê X, receba Y vezes mais. Uma teologia de ROI — Return on Investment — mal disfarçada.

Só que o texto não nasceu como cheque em branco. Era uma convocação para que o povo pós-exílio voltasse a sustentar os levitas, o templo, a estrutura comunitária. “Casa do tesouro” não é cofre mágico; é depósito de mantimento. O “provar” não é licitação para colocar Deus no banco dos réus; é metáfora de refinaria — verificar se a aliança ainda resiste.

O contraste com hoje é cruel. No mundo corporativo, ninguém leva a sério a ideia de “invista 10% e espere o universo abrir as janelas do céu”. Se alguém propusesse isso numa reunião de board, seria demitido por ingenuidade. Mas no ambiente religioso, essa retórica continua vendendo. É a psicologia do atalho: reciprocidade, aversão à perda, ilusão de controle. A mesma lógica que alimenta pirâmides financeiras travestidas de oportunidade.

No fundo, a má aplicação de Malaquias 3:10 não é espiritual; é gerencialmente desastrosa. Transforma o dízimo em KPI viciado. Quando a métrica vira alvo, perde o valor — a velha Lei de Goodhart. Gente doa esperando multiplicação automática, líderes contam histórias de bênçãos como provas de performance, e ninguém discute o que deveria importar: o financiamento sustentável dos bens comuns.

O texto só tem força se traduzido em linguagem contemporânea: paguem a conta dos bens coletivos, mantenham o sistema funcionando, e vejam o efeito real disso no ecossistema. No trabalho, isso é reservar parte do orçamento para infraestruturas invisíveis como  segurança, suporte, documentação,  aquilo que ninguém aplaude, mas todos precisam. No convívio social, é sustentar espaços comuns, não esperar que alguém faça sozinho.

Deus não precisa ser testado. O que precisa ser testada é a nossa capacidade de não cair em narrativas de barganha. Porque, no fim, não é sobre abrir as janelas do céu mas  é sobre evitar que a casa desabe por falta de responsabilidade coletiva.



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